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O Espiritual no Corpóreo

Se tivéssemos de buscar um sinônimo para espiritualidade diríamos, sem muito risco de errar, interioridade. E interioridade parece ser também a noção mais afim à ideia de mística. "Fecha a porta dos teus sentidos/e procura Deus no profundo" - propunha um dos expoentes do pietismo no século XVIII. A sua proposta representa bem aquilo que poderíamos designar por "mística da alma". De que se trata, afinal? Da consideração de que o caminho que nos conduz a Deus é fundamentalmente um exercício interior que implica uma relativização ou mesmo uma renúncia dos sentidos corporais. Para alcançar o divino a alma tem de mergulhar na própria alma. O divino oculta-se às possibilidades do corpo e à sua gramática, e não se deixa detectar senão pelo radar da profundidade mais estrita. O divino é o mistério. A via para ele passa por desligar-se do mundo, do mundo habitual e cotidiano, e reentrar no espaço interior, esse sim, a morada que guarda Deus religiosamente.

Numa obra que teve um grande impacto na imaginação cristã, e que trazia o emblemático título de A verdadeira religião, Santo Agostinho dizia: "Não saias para fora de ti, retorna a ti mesmo, porque a verdade habita no homem interior." Há que reconhecer que grande parte da mística cristã, mais antiga e até contemporânea, replicou indefinidamente este motivo, o que mostra quanto é oportuna uma releitura desse precioso património à luz de uma antropologia mais integradora. O grande São João da Cruz, por exemplo, na segunda metade do século XVI, explicava que "quanto mais a alma vai às escuras, e vazia de suas operações naturais, tanto mais segura vai". A subida ao monte místico implicava tomar como programa esta "noite sensitiva": procurar "o espiritual e interior" e combater "o espírito da imperfeição segundo o sensual e exterior". Mas esse modelo marcou e marca ainda referentes da mística cristã mais próximos de nós. Em pleno coração comercial de Louisville, cidade do Estado americano do Kentucky, há uma placa a assinalar que ali, no ano de 1958, ocorreu a segunda conversão do monge trapista Thomas Merton. Nessa época, ele já era mundialmente conhecido como autor no domínio da espiritualidade. O volume que o tinha lançado, dez anos antes precisamente, havia sido a sua autobiografia, A montanha dos sete patamares, onde o paradigma da fuga ao mundo estava completamente presente. Andando agora por Louisville, abraçando a marcha frenética de uma multidão naquele epicentro comercial, Merton teve a intuição de que afinal não existia diferença alguma ou separação entre ele e aquele povo desencontrado e sedento. Sentiu-se simplesmente membro da família humana, da qual o próprio Filho de Deus quis fazer parte. Nascia assim uma nova etapa da sua espiritualidade, crítica em relação à primeira. Thomas Merton percebia que a mística só pode ser uma experiência quotidiana, solidária e integrativa. De um lado, a excessiva internalização da experiência espiritual e, de outro, o distanciamento do corpo e do mundo permanecem, porém, em grande medida, características destacadas da espiritualidade que se pratica. O que é espiritual vem considerado superior àquilo que vivemos sensorialmente. O primeiro é estimado como complexo, precioso e profundo. O segundo é visto como epidérmico e sempre um pouco frívolo. E há uma sintomática condição desencarnada na vivência do religioso, que se refugia voluntariamente numa representação de alteridade em relação ao mundo, do qual se considera (vem sendo considerado) distante, para não dizer estranho. Na chamada "mística da alma", o Espírito divino é radicalmente outro face ao instante presente. E face ao destino histórico e pungente das criaturas.

Com a criação (isto é, desde o princípio dos princípios) ficou estabelecida uma fascinante e inquebrável aliança: aquela que une espiritualidade divina e vitalidade terrestre.

O realismo narrativo que a Bíblia adota não deixa, porém, de surpreender, e isso acontece desde os momentos iniciais. De fato, no núcleo da revelação bíblica não encontramos as dissociações que se tornaram tão correntes entre alma e corpo, interior versus exterior, prática religiosa e vida comum. No centro está a vida, a vida que Deus ama porque, como ensina Jesus, "Ele não é Deus de mortos, mas de vivos" (Lc. 20,38). Tal como não encontramos nenhuma aversão em relação ao corpo. Lê-se no relato de Gênesis: "Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo" (Gn. 2,4-7). O que é este "sopro vital"? É nada menos que o hálito de Deus, o seu Espírito que agora passa a estar ativo em cada vivente, percebido como fonte mesma da existência e codificado nos sentidos e manifestações vitais da pessoa humana. Com a criação (isto é, desde o princípio dos princípios) ficou estabelecida uma fascinante e inquebrável aliança: aquela que une espiritualidade divina e vitalidade terrestre. Pois onde experimentaremos melhor, a partir de agora, o Espírito de Deus senão no extremo da carne tornada vida? Onde contataremos com o seu sopro senão a partir do barro? Onde nos abriremos à sua tangível passagem senão através dos sentidos? A concepção bíblica afasta-se propositadamente das versões espiritualistas. Ela defende uma visão unitária do Ser Humano, em que o corpo não é visto nunca como um revestimento exterior do princípio espiritual ou como uma prisão da alma, como pretende o platonismo e as suas réplicas tão disseminadas. A nível criacional o corpo exprime a imagem e semelhança de Deus (cf. Gn. 1,27). Como afirma Louis-Marie Chauvet, "o mais espiritual não acontece de outra forma que não na mediação do mais corpóreo". Poderíamos adaptar, por isso, aquela frase de Nietzsche: "Há mais razões no teu corpo que na tua melhor sabedoria", dizendo que "há mais espiritualidade no nosso corpo que na nossa melhor teologia".




 
 
 

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