Poema do Cristão
- Jorge de Lima
- 12 de set. de 2023
- 2 min de leitura

Tempestade Acalmada, Cândido Portinari, 1955
Poema do Cristão
Jorge de Lima, em A Túnica Inconsútil, 1938
Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais, compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos, tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas. Posso enxugar com um simples aceno o choro de todos os irmãos distantes. Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas do mar, porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo, e creio na vida eterna, amém. E tendo a vida eterna posso transgredir leis naturais:
a minha passagem é esperada nas estradas, venho e irei como uma profecia, sou espontâneo como a intuição e a Fé. Sou rápido como a resposta do Mestre, sou inconsútil como a sua túnica, sou numeroso como a sua Igreja, tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos
cardeais; e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz
eterna nos olhos. E tendo a luz eterna nos olhos sou o maior mágico: ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alpha e
ômega, peixe, cordeiro, comedor de
gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho
mantos de púrpura e de estamenha, sou burríssimo
como São Cristóvão e sapientíssimo Santo Tomas. E sou louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém. E sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida, sou a balança, a criação, a obediência,
sou o arrependimento, sou a humildade, sou o autor da paixão e morte de Jesus, sou a culpa de tudo, Nada sou. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!
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