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A Conversão Dos Desejos (1ª Parte): início e queda dos nossos desejos

No ano de 2000, Dr. James Houston veio ao Brasil e fez uma série de palestras sobre espiritualidade. Na oportunidade foi lançado o livro A fome da alma. Tanto o livro quanto as palestras estavam alinhadas com o tema da conversão dos desejos. O assunto muito me interessou e fui ler um pouco mais sobre ele. Para mim, que fui discipulado com o trenzinho cuja locomotiva era a Fé que puxava dois vagões (Razão e Emoção), ouvir que o desejo é o combustível espiritual e que se caminha para longe ou para perto de Deus dependendo do que se deseja, desmontou meu castelinho.

Alguém já disse: “O homem é aquilo que deseja”. Não há um único ser humano que não tenha que enfrentar a força de seus desejos. O budismo afirma que a paz é a ausência de desejos. Mas certamente Buda tinha um desejo: o de não ter desejo. Para a psicanálise, a saúde é consequência de uma vivência próxima e respeitosa com nossos próprios desejos.

A teoria psicanalítica fala de um desejo inconsciente cujo objeto falta. O movimento do desejo cria um espaço que pretende ser preenchido por aquilo que se estabelece como seu objeto. Mas o encaixe nunca é perfeito e o espaço é provisoriamente preenchido com outros objetos que inevitavelmente deixarão evidentes as lacunas que ainda permanecem.

Há um "objeto perdido" que teria, no passado, propiciado uma experiência de completude. Esse objeto perdido seria a primeira experiência de satisfação, irrecuperável logo em seguida, sendo impossível ter novamente esse objeto. Esta experiência teria ficado gravado em nossa memória psíquica. Quando a tensão pulsional reaparece essa memória inconsciente é ativada.

Alguns teóricos chegam a afirmar a possibilidade de que, talvez, a "primeira experiência" nunca tenha existido de fato. Sendo assim, talvez ela seja um construto a partir do qual possamos elaborar uma reflexão teórica.

Desejo é esse movimento de "recolocação", de procura do objeto que nos proporcionará a mesma experiência de completude. Segundo Maria Lucia Homem, não existe a satisfação do desejo na concretude porque a dimensão do desejo não tem outra realidade que a psíquica.

Isso equivale dizer que o desejo nunca será satisfeito. Ele sempre se desloca. Um objeto se perde e em seu lugar põe-se outro, uma infinidade deles, que nunca trarão o mesmo prazer que o objeto perdido. O desejo busca o objeto perdido enquanto apenas podemos ter objetos substitutivos.

Poderíamos dizer que o desejo está na essência do homem.

O desejo nos fala de uma carência, uma falta, de uma saudade. Desejamos algo que está fora de nós. Quando falamos que temos um desejo, logo nos perguntam: “desejo de quê?" Na verdade, nosso desejo não se refere às coisas. O certo então seria perguntar: “Desejo de quem?”

Na verdade, nosso desejo não se refere às coisas. O certo então seria perguntar: “Desejo de quem?”.

O desejo que em nós habita não aponta para objetos, mas sim para pessoas: O desejo do outro e o desejo que ele me deseje. É este desejo que nos torna seres relacionais.

De onde vem este desejo? A resposta vem do próprio Agostinho: “Fomos criados por Ti e nossa alma não encontrará repouso a não ser em Ti”. Ou ainda do primeiro capítulo da doutrina católica: “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar”.

É natural que o homem deseje Deus. O salmista Davi retratou um encontro com Deus antes mesmo de seu nascimento. Salmo 139.13 “... tu me teceste no seio da minha mãe”; e no 16: “Os teus olhos me viram em substância ainda informe”. O que podemos observar na vida de Davi era um constante desejo por Deus: no Salmo 42: “Assim como a corça suspira pelas águas, assim minha alma suspira por Ti”; no Salmo 63: “A minha alma tem sede de Ti; todo o meu ser anseia por Ti”. Não podemos, nem de perto, esquecer o fato de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus e de que o testemunho bíblico é que Deus é Amor. Logo, deve ficar definido para nós que o nosso desejo mais primário é o desejo/anseio por Deus.

O pecado, quando entrou no mundo, o fez pela corrupção de um desejo. “Vendo que a árvore era desejável para dar entendimento...” Gn 3.6. Certamente na queda nossos desejos também foram corrompidos, por isso precisam ser convertidos.

Hoje, somos seres que desejam ardentemente, mas essa força dentro de nós está sem controle. Como disse o Ricardo Barbosa: “Nossos desejos são muitas vezes desordenados, confusos e corrompidos”. Dr. Houston: “Mesmo que queiramos esconder nossos desejos, ainda assim eles poderão influenciar muito profundamente nossa personalidade”. Ele aconselha ainda que “precisamos refletir sobre nossos desejos se quisermos que eles não prejudiquem a nós mesmos e aos outros”.

Miguel de Unamuno certa vez perguntou: “Não é verdade que todos nós naturalmente nos inclinamos para acreditar naquilo que satisfaz nossos desejos?”. Bem antes de Unamuno, Pascal já advertiu: “uma vez que o homem perdeu sua verdadeira natureza qualquer coisa pode tomar o lugar dela”, uma paráfrase nos diria que uma vez que o homem perdeu a fonte que satisfaz de seu desejo agora ele pode desejar qualquer coisa.

“uma vez que o homem perdeu sua verdadeira natureza qualquer coisa pode tomar o lugar dela”

A corrupção de nossos desejos pode até mesmo nos impedir de amar a Deus.

Nosso desejo não enfraquece e nem desaparece, mas podem ser direcionados para outras coisas. Essa é a essência da idolatria e do pecado: desviar o desejo de Deus para as coisas criadas ou pessoas, pensando que elas poderão nos satisfazer. Por isso as imagens distorcidas de Deus passam a fazer mais sentido.

Vejam o testemunho dessa mulher: “Imagino que eu deseje um Deus que eu possa controlar. Ele pode ser todo poderoso, mas terá que usar seu poder para fazer o que eu disser. Ele pode ser onisciente, mas terá que usar esse conhecimento para me ajudar. Ele pode ser amoroso e fiel, e isso deverá ficar evidente pelo carinho e apoio que ele me dá”.

Logo, se nosso desejo se desviar de Deus, mesmo que seja para a imagem distorcida que dele projetamos, isso vai nos afastar de Deus. Houston vai mais longe ao afirmar que tudo o que desejamos no lugar de Deus se transforma invariavelmente em um demônio.

Agostinho acreditava que se Deus não for o centro de nossos desejos eles se dispersarão em todas as direções sob a forma de prazeres e paixões, sendo isso verdade, a dispersão dos desejos, por sua vez, conduz ao vício e idolatria.

Vício significa, entre outras coisas, dependência em relação a algum processo ou substância. O início de um vício é incerto. Mas, diante da insatisfação de um desejo primário da alma (de amar e ser amado – acolher e ser acolhido – aceitar e ser aceito), encontramos uma maneira de perder o contato com essa realidade insatisfatória através de práticas e sentimentos que trazem um pouco de alívio. Houston diz que “quando as pessoas se sentem inúteis ou indesejáveis, a dor e a depressão podem ser rapidamente aliviadas por um prazer que se transforma em vício”.

Isto pode ser o primeiro cigarro, um gole de bebida, um encontro amoroso ou uma reação emocional. Sempre que a dor aparece voltamos para nosso remédio, para remediar. Por isso, por mais estranho que seja o vício dos outros, isso não deveria nos assustar tanto. É apenas uma maneira de fugir de uma realidade insatisfatória diferente da nossa. Até onde isso pode ir? Não há limites. Disse o Dr Houston: “Enquanto não reconhecermos e enfrentarmos nosso próprio lado sombrio (a nossa capacidade inata de praticar o mal), não poderemos avaliar o poder de destruição do nosso vício”.

Há dois tipos básicos de vícios: o de substância e de processo. O primeiro é de dependência química. O segundo, que é o mais interessante para nós, se dá com a dominação em relação a uma série de relações e inteirações tais como ganhar dinheiro, trabalhar, sexo, esporte, aposta, relacionar-se com pessoas, etc. A única diferença entre eles é a natureza do agente, mas o efeito é o mesmo: a perda de contato com a realidade, o comportamento compulsivo e a deterioração pessoal.

Rapidamente, queremos falar que todos os vícios deixam suas marcas no cérebro e na química do corpo. O cérebro nunca se esquece do que aprendeu e do que sentiu e por isso os vícios passados sempre terão o potencial de voltar.

O caminho do vício no cérebro nunca é desfeito. Se enredar novamente com um velho vício é sempre um perigo constante. Isso aponta para a necessidade de uma conversão que também seja permanente.

J.M. Houston: “Nossos traços de personalidade reforçam as atitudes e comportamentos produzidos pelo vício. Esses mesmos traços revelam quanto somos governados por nossos vícios emocionais e relacionais”. Poderíamos chamar as atitudes viciadas de Viés Neurótico, pois são resultados de nosso desejo inconsciente de evitar a dor e insatisfação e de buscar o que é prazeroso, tanto no campo físico como emocional.

Existe um vício na esfera pessoal: talvez precisemos assumir mais responsabilidades por nossos desejos e vício como agentes morais. Precisamos de humildade e coragem para assumi-los.

Há o vício na esfera familiar: são os padrões de comportamentos anormais que no âmbito familiar foram aceitos e cultuados como marca familiar, o que permite a perpetuação desses padrões em função dos mitos familiares.

Há ainda o vício na esfera da sociedade, que são os padrões aceitos pela sociedade, porém, inadequadamente avaliados e que depõe contra a vida.

Ao identificar nosso mais profundo desejo, que é o desejo por Deus, é necessário decidir ir em sua direção. Antes, talvez, tenhamos que decidir cortar a dependência de substâncias e processos que nos aliviam momentaneamente da dor de não termos nossos desejos primários (amor, aceitação e acolhimento) satisfeitos. Isso eu chamo de renúncia do vício. É o início do caminho para a conversão dos desejos.

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